quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Aventuras (e desventuras) de um psicólogo na Fundição Progresso


No dia 23 de junho de 2009, recebi uma mensagem da produtora Vanessa Damasco, solicitando minha autorização – assim como alguns dados pessoais e cópias de documentos – para o registro, junto à Biblioteca Nacional, de uma parceria musical. A Vanessa é esposa do Emerson ‘Facão’ Fernandes, com quem eu havia tocado, no grupo ‘Noturno’. Este, agora chamado ‘Nocturno’, está gravando um DVD e uma das composições (‘Se ela não ouvir’) é uma versão em português, que Facão fez comigo, de uma antiga canção minha em inglês (‘Everytime you see’). Tratei de tirar cópia dos documentos para o registro da co-autoria.
Numa sexta-feira, 17 de julho, fui à Fundição Progresso, onde Vanessa trabalha, para entregar os documentos. Ela me perguntou sobre o meu Mestrado em Psicologia na UFF. Eu contei que havia participado de uma ‘pré-defesa’ no dia primeiro de julho e, como a ‘pré-banca’ considerou a dissertação pronta, planejávamos marcar a defesa para a segunda quinzena de agosto. Vanessa me perguntou a respeito de meus planos profissionais de curto prazo. Eu disse que pretendia deixar para enviar currículos para faculdades e tentar o doutorado no ano seguinte, pois precisava terminar o disco do ‘Supercordas’ e aproveitar o lançamento para sair em turnê com a banda. Além disso, vim participando no Mestrado de algumas experiências ligadas ao tema das oficinas, que resultaram numa aproximação com o trabalho da Creche-Uff; embora ainda não houvesse aí qualquer proposta concreta que apontasse para um contrato remunerado.
Vanessa me contou então que, no Projeto NEC-Escola, da Fundição Progresso, eles estavam interessados em contratar psicólogo e assistente social, pois há muita demanda para este tipo de intervenção, embora ainda não esteja claro, nem ao menos para eles, como se dará tal intervenção, sobretudo no que diz respeito à Psicologia. O que ela deixou bem claro é que o interesse deles é justamente o de trabalhar com profissionais que topem o desafio de construir, junto com toda a equipe, uma metodologia que acompanhe os problemas e propostas, conforme surgem no dia-a-dia. Eles estão interessados em profissionais com disposição suficiente para construir, in loco, uma abordagem singular. Trata-se de um contrato temporário, que oferece mais ou menos metade do valor da minha bolsa de mestrado (que já estava chegando ao fim). Ela perguntou “E aí, Sandro?! É pra ti?” Eu respondi que sim!, mas quando? Ela disse que “o projeto vai de outubro agora até abril do ano que vem”. Mas, se eu topasse, era bom enviar um currículo até o fim de semana. Preparei e enviei no domingo, pois embora eles paguem pouco, podem me dar condições mínimas de sustento para meus planos de curto prazo. Além disso, esse trabalho também me interessou por outros motivos, que vou tentando esclarecer aqui.
No dia 20 de agosto, pela manhã, foi quando ocorreu então a minha defesa. Foi uma experiência maravilhosa, em que a pesquisa e a escrita foram elogiadas, com sugestão de continuação no doutorado e indicação de publicação, na íntegra, da dissertação. Além disso, a defesa aconteceu sob comentários e gestos afetuosos, incluindo um convite para a participação em um colóquio, em 29 de outubro, na mesa ‘Ritmo e Subjetividade’ que, aliás, é também o subtítulo da minha dissertação.
Quando entra setembro, contato Vanessa, para saber novidades sobre a Fundição. Ela diz que haviam acabado de definir uma primeira idéia sobre a atuação da Psicologia e gostariam de conversar comigo. Vamos marcar na quinta? Topo e nos encontramos então. É dia 3 de setembro e a proposta é que a equipe e eu comecemos a nos conhecer. Lá chegando, ela me apresenta Flávia e Débora, assim como fala mais sobre o projeto. O plano é mais ou menos o seguinte: durante a segunda quinzena de setembro, duas escolas públicas do ensino médio serão visitadas. Durante a primeira semana, serão divulgadas algumas das oficinas que o projeto oferece, partindo da própria proposição de oficinas no local. Durante a segunda, serão feitas as inscrições. O projeto visa atender a 70 jovens, durante seis meses, oferecendo uma oportunidade de participarem de diversas oficinas de arte, assim como aulas de Filosofia ministradas pelo Emerson Fernandes. 
O projeto envolve não apenas a prática com as oficinas, mas também uma preocupação com a produção de um pensamento ligado a tais práticas.  Emerson, por exemplo, é formado em Filosofia pela UERJ  e portador de uma trajetória de vida que, por si só, justificaria a relevância de seu trabalho junto a jovens de camadas populares. Facão tira de sua vivência em comunidade carente a inspiração para questionamentos estéticos e filosóficos. E este movimento de colocar o pensamento em função da prática entra em forte ressonância com os movimentos que envolvem o percurso do Projeto NEC, desde a fundação do Circo Voador, nos anos de 1980, até o momento atual, em que diversos grupos artísticos partilham seus processos de criação com jovens de baixa renda em um projeto sócio-educativo.

Um sobrevôo pela fundação da Fundição de Arte e Progresso

De acordo com o site da Fundição Progresso (www.fundicao.org), em 15 de janeiro de 1982, um grupo de quinhentos artistas, “num verdadeiro delírio de criação”, formou a Primeira Surpreendamental Parada Voadora, saindo da Praça Nossa Senhora da Paz rumo à ponta do Arpoador, onde então o Circo Voador montou a lona pela primeira vez. Três meses depois, o “rapa” retirou a estrutura. O ‘Circo Sem Lona’ partiu então para a animação de mutirões no Complexo do Alemão, até que a Prefeitura destinou alguns de seus terrenos para que o Circo escolhesse um e se instalasse. E assim, “em vinte e três de outubro de 1982, cinqüenta e quatro palmeiras imperiais foram plantadas e a Segunda Surpreendamental Parada Voadora fez aportar sob os Arcos da boêmia Lapa, o espaço livre e alucinante do Circo Voador”. Quando, alguns anos depois, uma antiga fundição de fogões e cofres desativada estava sendo demolida, alguns integrantes do Circo, ao lado da fundição, “se puseram entre as marretas e o prédio enquanto outros foram buscar ajuda, com o objetivo de embargar politicamente a demolição”. Em 1987, a Prefeitura e o Estado concederam ao Circo o uso do espaço da fundição.
O Circo Voador, concebido e administrado por Perfeito Fortuna, Maurício Sette e Marcio Calvão, reivindica o pioneirismo em iniciativas como a Creche Apareche: “no auge do Circo as crianças conviveram e interagiram com ensaios e espetáculos diversos de circo, dança, música de todos os estilos, além de plantar e colher na horta cultivada junto à cerca”. Ainda de acordo com a homepage, Perfeito Fortuna esteve afastado por um tempo da Fundição, retornando em 1999 e tendo sido então eleito presidente da ONG Fundição de Arte e Progresso. Sua primeira iniciativa foi chamar grupos artísticos diversos (Intrépida Trupe, Teatro de Anônimo, Centro Interativo de Circo, etc) para ocuparem o espaço e desenvolverem suas propostas. A Fundição vem sendo administrada pela terceira gestão da ONG, que detém a concessão do Estado do Rio de Janeiro:
A idéia que está sendo posta em prática desde então é o desenvolvimento das diversas culturas na maneira herdada pelo Circo Voador, experimentando e colocando ao alcance do grande público iniciativas pioneiras e autônomas nas áreas de arte, educação, meio-ambiente, projetos sociais.

O Núcleo de Educação e Cultura Fundição de Paz e Progresso

O projeto para o qual fui convidado é o NEC (Projeto Escola, do Núcleo de Educação e Cultura Fundição de Paz e Progresso), que está iniciando sua segunda edição. O NEC oferece oficinas de música, teatro, circo, grafite, cenografia e filosofia, para alunos de primeiro e segundo ano do ensino médio, estudantes da rede pública. De acordo com o site,
A idéia do NEC é estabelecer uma ponte entre esses jovens e o Centro Cultural, apresentando-os a produtos culturais, identificando aptidões, desenvolvendo talentos, até encaminhá-los ao processo de profissionalização na área do entretenimento cultural.
Ao final do curso, temos uma Mostra de Artes Integradas, que apresenta ao público e familiares dos alunos o resultado do trabalho desenvolvido, encerrando o ciclo das oficinas e fazendo com que a experiência com a arte seja completa, incentivando a formação de novos públicos e profissionais.

Quando Vanessa, Flavia e Débora me apresentaram o projeto, dizendo que a demanda por psicólogo e assistente social surgiu já na primeira edição, mas sem que isso indicasse como deveria ser exatamente o trabalho desses profissionais, diversas questões se esboçaram em minha mente, mas de maneira ainda confusa. “E aí, Sandro?!”, disse Vanessa. Após um breve silêncio, perguntei como seria, na prática, o regime de trabalho? Ela contou que o profissional do Serviço Social trabalharia todos os dias, pois eles já detectavam uma demanda constante por este tipo de intervenção. O psicólogo talvez atuasse de maneira mais pontual, de acordo com demandas específicas. Ainda teríamos que pensar um pouco mais, mas e aí, Sandro?!
Quando a pergunta se repetiu, propus que combinássemos, inicialmente, alguns encontros meus com o grupo, para que eu pudesse me familiarizar com sua dinâmica. Disse-lhes que já trabalhei com atendimento a grupos, tendo muitas vezes que desdobrar a atividade em atendimentos familiares, visitas e acompanhamento no território. Psicólogos e assistentes sociais costumam trabalhar em parceria. Flavia apreciou a idéia de encontros periódicos e rascunhamos enfim uma primeira formatação para o trabalho: terças e quintas, durante a tarde. Isso apenas em um primeiro momento, que Vanessa batizou de “zona de reconhecimento”, enfatizando o ‘zona’, como se estivesse querendo dizer o mesmo que Deleuze e Guattari: “do caos nascem os meios e os ritmos”. Ou, em outros termos, toda ordenação emerge de um estado em que os sentidos não se apresentam como já dados, mas têm que ser construídos. E essa construção é um processo que se dá numa certa “zona de indeterminação”, em que a produção dos sentidos pressupõe um estranhamento ou, em uma linguagem mais freudiana, um reconhecimento daquilo que é estranhamente familiar.
Enquanto eu me perguntava como poderia ser a atuação do psicólogo nesse trabalho?, uma torrente de lembranças me veio à mente: o Caps Vila Esperança, o Boxe do Pinel, a FIA- Fundação para a Infância e Adolescência, o Mestrado na UFF. No Caps e no Boxe, o trabalho focado em arte e oficinas era o que mais me atraía. Junto à FIA, todo o trabalho psicossocial com as crianças e famílias atendidas pelo projeto de que fiz parte, como integrante do MOTE (Movimento Terapêutico), talvez pudesse também contribuir para a prática atual. Mas é quanto ao Mestrado que esse estranhamento familiar se exibiu, naquele instante, com maior nitidez.
Na minha dissertação, escrevi sobre ritmo e subjetividade, articulando música e filosofia. Tratava-se de uma pesquisa bibliográfica, em que a leitura e a escrita eram também tomadas como práticas de produção de subjetividade. Além disso, faz parte do Mestrado a realização de uma atividade orientada que, para os bolsistas, consiste obrigatoriamente no chamado estágio-docência; ou seja, uma prática de ensino. Meu orientador, Prof. Dr. Eduardo Passos, sugeriu um trabalho ligado às oficinas de arte, o que conciliava meu interesse e experiência com os de Cristiane Knijnik, colega de turma, que além de possuir também experiência em saúde mental, faz formação em dança na Escola Angel Vianna e pesquisava o gesto, no Mestrado da UFF.
Decidimos oferecer juntos uma disciplina eletiva para a graduação, cujo título oficial era “Clínica e Cultura II”, a que demos o subtítulo “oficinas, corpo, ritmo e produção de subjetividade”. Nossa proposta era a de afirmar a inversão entre o lugar da teoria e da prática no pensamento contemporâneo. Partindo da pergunta “Oficinas para quê?”, que encontramos no título de um artigo da professora Dra. Cristina Rauter,  montamos oficinas em quase todas as aulas, e propusemos leituras de textos sobre os temas que buscávamos trabalhar. E a própria leitura, assim como a escrita, era constantemente colocada em questão enquanto prática. Fazíamos oficinas para investigar o sentido de se fazer oficinas.
Um dos efeitos produzidos em tal experiência tomou a forma de um convite. A Olga, aluna da disciplina, fazia estágio na Creche-Uff, onde o trabalho era baseado em projetos que envolviam a produção de oficinas. Como os temas partiam da prática, os profissionais tinham que lidar com a angústia de trabalhar sem as garantias oferecidas por uma grade curricular pré-estabelecida. Eles buscam produzir atividades e questionamentos, conforme os temas surgem no cotidiano com as crianças. Fomos então convidados a participar de um dos encontros da formação continuada, que ocorrem mensalmente na creche. Haveria em torno de trinta pessoas, pois a creche tem um convênio com a Secretaria de Educação de Niterói: enquanto a Secretaria disponibiliza alguns profissionais para o trabalho na creche, esta oferece uma formação continuada para a rede de ensino do Município. No dia 1 de julho, horas antes de minha pré-defesa, efetuamos o trabalho, após alguns meses de visitas à Creche e conversas com a psicóloga Bernardete, que nos fez o convite. Toda esta lembrança veio de súbito, durante a conversa na Fundição, indicando uma insólita, porém real, confluência de sentidos.
Com isso, a questão “como poderia ser a atuação de um psicólogo nesse trabalho?”, maneira outra de formular “como seria, na prática, o regime de trabalho?”, fundiu-se com a pergunta “oficinas para quê?”, produzindo certa confusão em minha mente, uma vez que o trabalho do NEC é todo pautado em oficinas de arte. Mas as oficinas do NEC não são oferecidas por psicólogos, ou mesmo em uma típica instituição de saúde, como um Caps, ou Hospital-dia. O trabalho do psicólogo aí é outro. Qual seria então? É esta a questão que a Fundição está me convidando enfim a pesquisar. Portanto, durante minha participação no projeto, eu pretendia partir do problema prático da construção de um lugar para o profissional de Psicologia junto a um projeto social pautado no trabalho de grupos com longo histórico de intervenção artística, com o objetivo de pensar a construção de uma clínica social na interface com a arte e a cultura.

Afundamento

Outubro chegou com um projeto em germe. Eu havia pensado em partir da leitura que Deleuze faz da obra literária Aventuras de Alice no País das Maravilhas como ferramenta para problematizar a criação no contemporâneo, pois eu pretendia produzir uma narratividade para essa experiência de construção do trabalho da Psicologia Social na interface com as oficinas de arte. O primeiro ponto seria apresentar a personagem Alice, situando, ao mesmo tempo, a relevância da obra de Lewis Carroll para a literatura e a lógica contemporâneas. O segundo seria contextualizar a época em que o autor escreveu Alice como a época de Marx, Freud e Nietzsche, personagens que fizeram a questão da interpretação das origens dar lugar à emergência do pensamento como uma espécie de teatro filosófico. O terceiro seria pensar como este teatro filosófico entra em devir com as tragédias e comédias gregas e o que elas ainda têm a dizer sobre os acontecimentos atuais.
Mas algo aconteceu. Ou melhor, não aconteceu. Ou pior, um silêncio sombrio precedeu um ataque explosivo das linhas de poder do capital. Senti na pele como John Cage havia sido certeiro ao afirmar que é próprio do plano que o plano fracasse. E isso parece se radicalizar ainda mais quando Mallarmé diz que um lance de dados jamais abolirá o acaso. Afinal, mesmo que no plano de organização desta experiência eu viesse buscando afirmar o máximo de respeito ao plano de imanência, um vendaval sempre poderia vir, lançando todos os dados no fundo do mar, de modo que eu não conseguisse mais jogar com eles e tivesse que abortar qualquer plano.
No dia 03 de outubro, diante da tela do caixa eletrônico do Banco do Brasil, ocorreu-me uma súbita apreensão da necessidade de uma mudança urgente; isso era, em todos os sentidos, algo da minha conta. Mandei um e-mail para saber como está o lance na Fundição? Mas, nesse lançamento de dados, o copo voou junto e ao cair no mar a esmo acabou afundando por lentos quatro dias. Até que uma garrafa apareceu boiando às margens de minha espera, com um e-mail dentro dela, onde Vanessa respondeu enfim que mudaram algumas orientações para o projeto, o que envolve não contratar o psicólogo agora, e buscá-lo mais à frente em caso de atendimento. Ela disse também o quanto nossa conversa foi bacana naquele dia, mas que tiveram que tomar uma decisão de acordo com as novas parcerias da Fundição, que englobam um atendimento da PUC em várias áreas como comunicação e jurídico. Capitalismo e esquizofrenia: Serviço Social e Psicologia foram tragados nesta parceria. Assim como a Vanessa fez no e-mail, concluo aqui que às vezes é assim, me programo de uma maneira, mas tenho que executar de outra. Respondi o e-mail dela no dia das crianças e conclui estas anotações no dia do Mestre. Não sei o porquê; mas isso talvez sirva como tema de uma tragicomédia futura que o tempo me ensine a apreciar...

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