Digital Ameríndio entrevista Sandro Rodrigues sobre a letra de Lombroso (ou a verdadeira rapa do juá):
D.A.: Bardo, admito que quando gravei Lombroso não fazia muito idéia do sentido dessa letra. No fundo achei que rolasse um mero apelo ao nonsense, devido à incomensurável coalescência entre a sonoridade das palavras e do instrumental. Mas eu gostaria que você, como autor da letra, me ajudasse a entendê-la um pouco melhor...
S.E.R.: Bardo, para variar, essa rapa do Lombroso é uma espécie de síntese de heterogêneos. Mas vou tentar desenhar aqui uma transversal que lhe dê consistência, ok?
D.A.: Por gentileza, Bardo.
S.E.R.: Então, compus essa canção quando trabalhava como psicólogo em Paracambi (trabalhei pouco mais de uma ano lá, entre 2006 e 2007) e passava muitas horas por dia viajando de trem. Em Paracambi há o maior hospital psiquiátrico da América Latina, o Dr. Eiras, que está sob intervenção desde 2003, por ser um manicômio, algo muito cruel e retrógrado. Criaram vários serviços substitutivos lá (CAPS, casas de passagem, residências terapêticas etc), que estão no contexto da Reforma Psiquiátrica propondo um tratamento mais humanitário. Só que o que eu senti é que, na prática, ainda havia muito da mentalidade deprimente da psiquiatria clássica (o que Peter Pál Pelbart chama de "manicômio mental"), sobretudo com uma parceria muito escrota entre uma prefeiturazinha colonialista (para você ter uma idéia, todos que iam trabalhar lá tinham que passar por uma "entrevista" com o Galileu, sogro do prefeito...) e uma clínica particular conhecida como Hospital da Cascata - nome muito conveniente, diga-se de passagem -, dirigida por uma família de militares do interior, daqueles que andam cheios de pulseiras de ouro nos braços e frieza no coração. Digo isso porque Cesare Lombroso foi um médico italiano, considerado o pai do direito positivo, que desenvolveu um método absurdamente eugenista de antropologia criminal, que consistia em determinar a propensão ao crime a partir da medição dos crânios (sabemos muito bem no que deu esse tipo de coisa).
Eu esquentava muito a cabeça nesse trabalho em Paracambi, não apenas pela esdrúxula mentalidade (e atitude política) manicomial que toda hora se manifestava, como também pelo próprio desgaste das longuíssimas viajens de trem, com seus solavancos constantes e a extrema poluição sonora causada por pencas de camelôs (enquanto o "rapa" não ataca, dá para se comprar muita coisa barata no trem que vai para Japeri e no que eu tinha que pegar depois, de lá para Cambi), além de um monte de pagodeiros e evangélicos berrando de uma maneira bastante inconveniente, sem qualquer respeito ao incômodo que podiam estar causando.
No entanto, durante dois meses, algo me chamou atenção de um modo bem diferente: era um grupo de jovens camelôs, que passavam pelos vagões oferecendo uma espécie de panacéia, bem ao estilo Simão Bacamarte, que eles anunciavam bem desse jeito que você canta ("éa fertadeeera rapatuchuááá..."), um jeito muito surreal. Eles gritavam "Micózi! Tôr ti ténti! Siquizíra! Cocêra! Caxpa! Ixpínha! É a fertadeeera rapatuchuááá...". E o mais surreal mesmo era que todos falavam exatamente do mesmo jeito, exatamente com a mesma voz. Mas acontece que quando, finalmente, tive a idéia de levar um gravador para o trem para registrar essas pérolas, nunca mais os vi ou ouvi. Ainda continuei trabalhando em Paracambi por mais alguns meses, mas não pude aguentar a saudade dos tais camelôs e, para evitar cair numa extrema melancolia, decidi abordar clinicamente este fragmento de todo aquele somatório de experiências, com as lombras e sequelas que me restaram. Foi mais ou menos isso que tentei um pouco tornar audível nessa música. Mas diga aí então, Bardo... te esclareci?
Eu esquentava muito a cabeça nesse trabalho em Paracambi, não apenas pela esdrúxula mentalidade (e atitude política) manicomial que toda hora se manifestava, como também pelo próprio desgaste das longuíssimas viajens de trem, com seus solavancos constantes e a extrema poluição sonora causada por pencas de camelôs (enquanto o "rapa" não ataca, dá para se comprar muita coisa barata no trem que vai para Japeri e no que eu tinha que pegar depois, de lá para Cambi), além de um monte de pagodeiros e evangélicos berrando de uma maneira bastante inconveniente, sem qualquer respeito ao incômodo que podiam estar causando.
No entanto, durante dois meses, algo me chamou atenção de um modo bem diferente: era um grupo de jovens camelôs, que passavam pelos vagões oferecendo uma espécie de panacéia, bem ao estilo Simão Bacamarte, que eles anunciavam bem desse jeito que você canta ("éa fertadeeera rapatuchuááá..."), um jeito muito surreal. Eles gritavam "Micózi! Tôr ti ténti! Siquizíra! Cocêra! Caxpa! Ixpínha! É a fertadeeera rapatuchuááá...". E o mais surreal mesmo era que todos falavam exatamente do mesmo jeito, exatamente com a mesma voz. Mas acontece que quando, finalmente, tive a idéia de levar um gravador para o trem para registrar essas pérolas, nunca mais os vi ou ouvi. Ainda continuei trabalhando em Paracambi por mais alguns meses, mas não pude aguentar a saudade dos tais camelôs e, para evitar cair numa extrema melancolia, decidi abordar clinicamente este fragmento de todo aquele somatório de experiências, com as lombras e sequelas que me restaram. Foi mais ou menos isso que tentei um pouco tornar audível nessa música. Mas diga aí então, Bardo... te esclareci?
D.A.: Bastante! E agora já me sinto bem melhor!
S.E.R.: Qualquer coisa, me liga, beleuze?!
D.A.: Beleuza pura...
4 comentários:
incrível!
vocês me fizeram viajar e voltar ao "Japeri". Morando em Nova Iguaçu, vocês sabem como é...
A rapa do juá é, sem dúvida, o artigo (indefinido, pois serve para quase tudo) mais interessante vendido no trem.
Ou tudo mesmo, né?!
Hahahaha, interesante história. Tinha ouvido a faixa como umas 200 veces, foi alucinante, mas ao ler isto foi ainda mais.
É como cá em Porto Alegre os caras vai gritando pelas ruas: Compro-o-ouro, compro-o-cabelo...
Valeu, Joao
Tem uns vendedores que são realmente umas pérolas, João...
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