domingo, 11 de setembro de 2011

Os 100 metrônomos de Ligeti e as 100 linguagens das crianças



Em 1962, o músico húngaro Györgi Ligeti (1923-2006) montou um mecanismo para apresentar seu Poema sinfônico para 100 metrônomos. Consistia numa espécie de brinquedo que liberava em seqüência 100 metrônomos regulados em velocidades distintas e posicionados de modo tal que os cliques começassem e terminassem em momentos distintos. O efeito resultante é o de uma sobreposição de camadas de ritmicidade móveis que dão aos ouvidos a sensação de certo desfolhamento temporal. É curioso que o compositor tenha buscado arrancar esse tipo de efeito justo de uma combinatória de repetições tão monótonas quanto só a pulsação redundante dos cliques de metrônomo pode soar: ‘tic, tic, tic, tic, tic, tic, tic...’. Acontece que mesmo quando se repete uma matéria sonora tão idêntica a si própria quanto o clique de um metrônomo (assim como de cronômetros, relógios etc), a contemplação desta repetição já implica a produção de uma mudança subjetiva. E que mudança é essa?
Em Diferença e Repetição, o filósofo Gilles Deleuze (1925-1995) nos propõe pensarmos as sínteses passivas do tempo. A primeira é a fundação do presente que passa, na fusão dos instantes independentes do passado e do futuro: trata-se de uma síntese passiva, pois mesmo quando ouvimos repetições de elementos semelhantes, tendemos a reuni-las, agrupá-las em pequenas células rítmicas, independente de termos consciência de fazê-lo. Tal como ocorre na percepção das durações de presença da música indiana, esta primeira síntese do tempo é uma síntese entre durações heterócronas; é uma síntese de diversas durações que sentimos no presente vivido. Mas mesmo nossos hábitos já são vividos sob intervenção da memória - o que Deleuze chama de segunda síntese do tempo. A memória é o fundamento do tempo, o que faz com que o presente passe, o que funde o presente vivido com o passado. O passado fundamenta o ser, pois só o passado ‘é’. Mas enquanto estamos sendo e deixando de ser, ao mesmo tempo, enquanto estamos sentindo as mudanças sem encontrarmos pontos de referência, o que podemos dizer? Trata-se, no caso, de uma terceira síntese do tempo, da afirmação do futuro, da mudança, do eterno retorno da diferença. E como uma tal síntese se torna audível?
A emergência dessa temporalidade sem fundamento na superfície da linguagem musical é algo que remete a uma inversão no modo de abordar o tempo, tal como aquela que, conforme Deleuze propõe em Lógica do Sentido, foi produzida pelo estoicismo antigo. Para os estóicos, só os corpos existem, o mundo é um mundo de corpos (e mesmo a alma e as palavras, por exemplo, são corpos) misturados no espaço. E os corpos são causas uns para os outros. Mas causas de quê? De efeitos incorporais. Ou seja, efeitos de uma outra natureza, incorpóreos, distintos dos corpos, mas que só subsistem por intermédio deles. Como diz Deleuze, os estóicos promoveram uma reversão do platonismo por terem sugerido como o devir dos corpos, verdadeiro devir-louco em que os corpos se encontram misturados, poderia ser expresso na linguagem. A linguagem teria o papel de dizer o instante: ‘a árvore verdeja’, ‘Alice crescendo’, 'Alice diminuindo'. Mas o que ali se constata é uma transformação incorporal, uma inversão da causalidade, um privilégio aos efeitos da linguagem.
Ligeti promove uma invenção musical a partir da repetição obstinada dos equipamentos mais simples e irritantes para os ouvidos do músico: os metrônomos. A repetição do material põe em evidência os efeitos subjetivos que daí emergem. Quando pensamos em termos da produção de subjetividade, consideramos que o material repetido pode ser extraído de quaisquer tipos de fragmentos, não havendo hierarquia a priori. O material pode ser extraído de gestos simples como o cantarolar de uma criança. Pois enquanto a criança repete o cantarolar, produz-se um efeito de subjetivação que se expressa, por exemplo, pela produção de uma espécie de fio condutor em meio ao caos imaginário, pela tentativa de organização de um espaço interior.
Este paradoxo presente na repetição ligetiana dos 100 metrônomos não diz respeito apenas ao campo do sonoro, à questão do ritmo musical, mas tem lugar também na produção de um sem-número de modos de expressão. Pois cada gesto, ao ser repetido, pode se deslocar para um plano onde adquire certa consistência estética que permite a proliferação de inúmeros sentidos que não conseguem se esgotar em impulsos motores. Efeitos de linguagem emergem de inúmeras maneiras, como efeitos óticos, sonoros, visuais; efeitos de bifurcação do sentido, de mudança, suspensão do sentido, de produção de paradoxos; e a produção da subjetividade é efeito das sínteses do tempo. É a temporalidade que habita a linguagem e a vida, em sua dimensão de criação.
Alguns educadores italianos e americanos contemporâneos dizem que as crianças têm 100 linguagens. Ou tantas quantas nossos temperamentos nos permitam distinguir. Mas como ouvimos o que elas podem ter a nos ensinar sobre música e vida? Não será necessário um devir-criança da linguagem, para que se aumente o grau de abertura comunicacional entre o discurso lógico-verbal hegemônico e as n-linguagens minoritárias que afirma, por exemplo, a criança? E sem identificar criança aqui com um ser da ‘criança’, mas com este habitar a linguagem como uma criança, nesta dimensão pré-verbal, ou assignificante, por onde inúmeros novos sentidos podem proliferar.
Pois, como o exemplo de Ligeti torna audível, novos sentidos podem emergir a partir da repetição de pequenos fragmentos sem-sentido, ou descolados de seu sentido usual, abrindo assim novas regiões de contato com potências germinantes presentes na linguagem musical e na vida. Não é uma questão de regredir à infância, mas de mudar a percepção, intensificando a coexistência de diversas camadas temporais simultâneas, fazendo coexistir, por exemplo, o velho do passado com a criança do futuro. Mas como? Tem um bocado de gente trabalhando nisso há bastante tempo (e ainda dizem por aí que os músicos não crescem nunca)...

(ensaio escrito para a Revista Machado, inspirado nas pesquisas do mestrado e em uma experiência prática de oficina com profissionais da rede pública de educação do município de Niterói, que realizei na Creche UFF, em 2009, com Cristiane Knijnik e Eduardo Passos)

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