terça-feira, 10 de setembro de 2013

O PLC-37/2013


O ano de 2013 no Brasil vem sendo marcado por intensos protestos nas ruas, com pautas diversas de interesse coletivo. Inúmeros atos públicos, constantemente dispersados pela polícia com bombas de gás, sprays de pimenta e balas de borracha, dentre outras estratégias violentas. A morte de nove pessoas na favela da Maré, no Rio de Janeiro; manifestantes sendo perseguidos em todo país; outras mortes; o desaparecimento suspeito de um pedreiro, morador da favela da Rocinha, suscitando uma pergunta que ecoou no mundo todo: Cadê o Amarildo? Mídias independentes mostrando a covardia policial e evidenciando processos de manipulação da informação, utilizados pela grande mídia interessada nos lucros gerados por mega-eventos, como a Copa das Confederações, as Olimpiadas, a Jornada Mundial da Juventude, a Copa do Mundo, o Rock in Rio... É forjada a imagem do “vândalo”, como responsável pela violência nos protestos. Enquanto uma das pautas mais presentes nos atos diversos é a desmilitarização das polícias, a pauta predominante nos veículos da grande mídia continua tagarelando diariamente com a fórmula maçante “o protesto correu pacífico (…) até que vândalos (…) e a polícia teve que (...)”, tentando desviar, assim, nossa atenção, do modo covarde e mascarado como essa violência de Estado é produzida e alimentada.
Em meio a onda de protestos, o Legislativo acelerou a tramitação de alguns importantes projetos de lei, sem o devido debate com os setores sociais interessados, atentando assim contra a democracia. Tal é o caso do Projeto de Lei da Câmara nº 37/2013, colocado em regime de urgência, sob a justificativa de “responder a reivindicações por segurança” que estariam sendo feitas nas ruas. Estranha afirmação, até porque a proposta com a qual o Senado estaria supostamente respondendo a reivindicações por segurança é uma verdadeira afronta à segurança e à saúde.
O PLC-37 – antigo PL 7663/2010, de autoria do deputado Osmar Terra –, que visa alterar a atual legislação sobre drogas, já havia sido rejeitado por órgãos do Executivo, por ir em direção oposta ao que preconizam diversos atores sociais e agências internacionais. Assim, a tentativa de acelerar sua aprovação é uma afronta à democracia, enquanto suas principais propostas representam uma verdadeira agressão à saúde e à segurança. O texto do projeto prevê o aumento das penas por tráfico de cinco para oito anos de detenção, a internação involuntária para os usuários e a criação de um sistema paralelo para o tratamento, que, fora do SUS e da alçada do Ministério da Saúde, financia as chamadas comunidades terapêuticas (CTs), ligadas, em sua maioria, a entidades religiosas.
Foi marcada para hoje, às 9:30, uma audiência pública para instruir o PLC-37, com a participação de representações do SENAD, do CFP, das Comunidades Terapeuticas, da Rede Justiça Criminal, da Rede Nacional Internúcleos de Luta Antimanicomial, do Fórum Brasileiro de Gestores de Políticas sobre Drogas, do Colegiado de Conselhos Estaduais de Políticas Sobre Drogas, da Rede Pense Livre e médicos. Enquanto aguardamos ansiosamente os efeitos do encontro, cabe aqui um esboço de análise dos retrocessos em relação à abordagem ao tema, contidos nas três propostas acima.

O aumento das penas por tráfico

Em 23 de agosto de 2006, foi promulgada a Lei nº 11.343 sobre drogas, atualmente em vigor. Naquele momento, a extinção da pena privativa de liberdade pela posse de drogas para uso pessoal, contida no texto da lei, foi comemorada por muitos como um avanço em direção à cidadania. Pelo texto da nova lei, usuários de drogas não seriam mais presos por uso. O avanço, no entanto, é ilusório: a abordagem ao tema é ainda proibicionista e medicalizante; portanto, violenta.
A Lei 11.343/06 foi promulgada em meio a um clima mundial de reconhecimento dos fracassos do proibicionismo em reduzir a circulação e o consumo de drogas. Como afirma a juíza aposentada Maria Lucia Karam, na coletânea Drogas e cultura: novas perspectivas, o proibicionismo é uma política que, há décadas, vem orientando a legislação brasileira a respeito de produtores, distribuidores e consumidores de “substâncias psicoativas e matérias-primas para sua produção, que, em razão da proibição, são qualificadas de drogas ilícitas”. Para começar, a divisão usual entre drogas lícitas e ilícitas não se justifica por características farmacológicas das substâncias, mas trata-se de uma arbitrariedade do próprio proibicionismo, essa política que obedece a uma “lógica” tripartite, segundo a qual: a produção, distribuição, prescrição e consumo de drogas produzidas pela indústria farmacêutica são considerados benefícios inquestionáveis; a produção, distribuição e consumo de ácool e cigarros são tidos como espécie de bem cultural, constantemente alimentado pela publicidade, assim como pelo financiamento de grandes eventos por tais indústrias; enquanto as drogas qualificadas como ilícitas são consideradas um problema de segurança internacional por excelência, justificando-se, assim, o combate à sua produção, distribuição e consumo. O proibicionismo trata as drogas ilícitas como um mal em si, convenientemente calando sobre dependência e efeitos colaterais causados pelo crescente consumo de cigarro, álcool e medicamentos. A distinção entre permitido e proibido é jurídico-moral.
A chamada política de “guerra às drogas”, expressão militarizada do proibicionismo, não se configura, tampouco, como uma guerra ao perigo inerente a certas substâncias, mas como uma guerra a seus produtores, distribuidores e consumidores: ou seja, uma guerra contra vidas humanas. Mas, para que os governos se digam democráticos e, ao mesmo tempo, sustentem essa guerra absurda, é preciso corromper a própria ideia de democracia, criando “inimigos internos”, criando uma imagem assustadora dos produtores, distribuidores e consumidores das drogas classificadas como ilícitas, sem qualquer critério plausível para que se considere o consumo de tais drogas mais perigoso que drogas como o álcool, o cigarro e certos medicamentos, cujo registro de problemas de saúde ligados diretamente ao consumo é infinitamente maior que o registro de problemas de saúde causados por propriedades farmacológicas nocivas das substâncias tornadas drogas ilícitas por conta de sua proibição. O proibicionismo mostrou-se um fracasso, não apenas por ser incapaz de diminuir a circulação e o consumo de drogas, mas por aumentar a violência associada, assim como estimular a criação de compostos mais danosos e potencialmente viciantes, como o crack. No entanto, mesmo com as drogas mais fortes de hoje, a maior violência não resulta de seus efeitos farmacológicos, mas ainda de sua criminalização. Como afirma Karam, “em matéria de drogas, o perigo não está em sua circulação, mas sim na proibição, que, expandindo o poder punitivo, superpovoando prisões e negando direitos fundamentais, acaba por aproximar democracias de Estados totalitários”.
Assim, embora a Lei 11.343/06 despenalizasse o uso, aumentou a pena do tráfico e, nessa barganha, acirrou-se o proibicionismo, violentando produtores e distribuidores, atingindo usuários e toda a sociedade. Na lei, produção e distribuição são qualificadas como “tráfico”, cuja penalização aumentou em relação à legislação anterior. Na então revogada Lei 6.368/76, a pena mínima para o tráfico era de três anos de reclusão. Com a Lei 11.343/06, a pena mínima aumentou para cinco anos.
Maria Lucia Karam é atual membro da LEAP (Law Enforcement Against Prohibition, ou “Agentes da Lei Contra o Proibiocionismo”), instituição criada, em 2002, por integrantes ativos e aposentados das forças policiais e da justiça criminal que alertam sobre a falência das atuais políticas de drogas em lidar tanto com a dependência quanto com a criminalidade causada pela criminalização do mercado das substâncias proscritas. A LEAP tem por secretário geral no Brasil o delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro Orlando Zaccone, que aponta o tráfico de drogas como maior vetor de criminalização dos novos tempos. Em sua pesquisa de mestrado, Zaccone mostrou, com dados oficiais, como a criminalização produz um altíssimo número de favelados presos como traficantes. Trata-se de uma política de limpeza urbana.
Estatísticas atuais apontam para um aumento em 30%, nos últimos dois anos, do número de condenados por tráfico, aumento três vezes maior que o da população carcerária total no período. Esse aumento não diminuiu em nada o tráfico e a violência associada. A população encarcerada é tipicamente de baixa escolaridade e baixo poder aquisitivo, sem grande poder econômico ou estratégico dentro da estrutura do narcotráfico internacional. A polícia e a grande mídia comemora (embora possa também fazer o contrário) a cada prisão ou morte de “traficantes perigosos”, estratégia que serve para desviar a atenção das grandes instituições do capital que realmente se beneficiam do tráfico de drogas ilícitas e se mantem ilesas.
Assim, o aumento da pena para tráfico, proposto no PLC-37, é uma absurda exacerbação do proibicionismo. A guerra às drogas é uma desculpa para disfarçar o extermínio da pobreza. O que essa distinção penal, entre usuários e traficantes – feita sem critérios claros e deixando, assim, a primeira seleção a encargo de policiais –, tem representado, de fato, é uma ampliação da população passível de ser punida, assim como uma tentativa de disfarçar os critérios estereotípicos pelos quais a polícia costuma eleger seus suspeitos, ou mesmo transformá-los em criminosos. Aqueles que, por sua vez, são enquadrados na categoria “usuário”, não foram tampouco esquecidos pelo poder punitivo e sua “lógica”. Algumas arbitrariedades também lhes foram reservadas.

As internações forçadas

Há muito que se luta para que o problema do abuso de drogas saia da alçada da segurança pública para que possa ser abordado como uma questão de saúde pública. Faz todo sentido, caso se considere, por exemplo, a perda de autonomia de certos usuários perante uma forte dependência à substância. No entanto, essa questão vem sendo encaminhada de modo estranho nos últimos anos. Contra uma alegada perda de autonomia, inerente a todo e qualquer usuário das drogas tornadas ilícitas (todos considerados “doentes”, “viciados”, como se não houvessem outros usos para tais substâncias), o Estado propõe ações violentas que visam anular qualquer possibilidade de gestão autônoma do uso de drogas, pelo recurso às internações forçadas e à medicalização dos usuários (como se os medicamentos fossem drogas muito seguras, o que estudos recentes questionam). Assim, o Estado sequestra a autonomia dos usuários. Sabemos que é com a aproximação dos grandes eventos, mas “em nome da saúde”, que o governo do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, vem realizando inúmeros atos violentos de internação forçada de usuários (e “suspeitos” de uso) de crack em situação de rua.
Tomar as drogas como uma questão de saúde exige que se entenda, de saída, que não há saúde possível sem autonomia e que se entenda também que autonomia não é uma propriedade do indivíduo, mas se produz em encontros, experiências coletivas, que ampliam nossas possibilidades de estabelecer novas normas, novos ordenamentos para a vida. A internação forçada dos usuários, em é um atentado à sua saúde e cidadania, pois trata-se de uma tática desumana de sequestro (incluindo spray de pimenta para a abordagem dos selecionados) e privação de liberdade, apartando os “usuários e suspeitos” do convívio com a família e a comunidade, para confiná-los em instituições normalizadoras no interior das quais pouca autonomia resta aos usuários (e mesmo a mera ameaça constante desse sequestro já fomenta efeitos de exclusão, de paranoia).

O financiamento das comunidades terapêuticas

Enquanto a “guerra as drogas” anuncia o desejo de um mundo “livre das drogas”, ou um “mundo sem drogas”, as internações forçadas põe-se em ação com base em um discurso moral que implica amplo retrocesso no que diz respeito à saúde. O PLC-37 propõe um sistema paralelo para o tratamento, que, fora do SUS e da alçada do Ministério da Saúde, alimenta financeiramente as comunidades terapêuticas (CTs), ligadas, em sua maioria, a entidades religiosas.
Em 6 de agosto, o Governo Federal lançou, através da SENAD (Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas), vinculada ao Ministério da Justiça, órgão responsável pela gestão do sistema prisional, um edital para grande repasse de recursos às comunidades terapêuticas, voltadas para internações de longa duração, ignorando conferências nacionais de saúde e assistência social que recomendaram veto a tais tipos de repasse. Relatórios recentes do Conselho Federal de Psicologia e do Comitê de Prevenção e Combate à Tortura do Estado do Rio de Janeiro evidenciaram relatos de tortura, assédio moral, desrespeito ao sigilo de correspondência, assim como “conversão” a determinados credos religiosos, além de mais uma série de graves violações de direitos.
Trata-se, além de confinar corpos em espaços restritos e superlotados, de submetê-los a um regime de controle das condutas exercido com base na moral religiosa cristã que, junto com a justiça e a psiquiatria compõe uma rede de instituições que visam unicamente a abstinência. A psiquiatria, mais voltada para a doença mental, a justiça mais para a delinquência, e a moral cristã arremata, associando o prazer ao mal em um processo de culpabilização do uso. Dessa trindade, reverberam diversos estigmas, estereótipos, paranoias, bad trips...

Segue abaixo uma carta de repúdio a tal repasse, publicada na internet no dia 7 de setembro, pela Frente Estadual Drogas e Direitos Humanos - RJ.


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