Hoje, no Golden Gate Park, em San
Francisco-CA, está sendo realizada a Hofmann's First Annual Bicycle Day Parade.
A festividade comemora não apenas a bicicleta, mas, sobretudo, a
viagem psicodélica. Mas qual a
relação entre ciclovia e psicodelia?,
você talvez perguntaria. Bem, se quiser mesmo saber, acomode-se bem
e façamos logo uma visita ao
laboratório daquela famosa companhia suiça de produtos químicos,
fundada em 1886, por Edouard Sandoz.
entrando
no laboratório
Em 1929,
o químico suíço Albert Hofmann foi trabalhar no laboratório da
companhia de produtos químicos Sandoz, com a equipe do professor
Arthur Stoll, cuja atividade principal consistia basicamente em
isolar alcaloides, investigar
e produzir amostras puras dos princípios ativos de plantas.
Alcaloides são substâncias presentes em
certas plantas – assim como em certos fungos, bactérias e animais
– que podem produzir efeitos psicoativos diversos, tais como
torpor, anestesia, energia, excitação,
tremores, delírios, alucinações etc. São em geral identificadas
pela terminação ina,
como cafeína, morfina, cocaína, heroína, mescalina, leonorina...
Hofmann
(1980)
nutria especial interesse em plantas cujos princípios ativos são
instáveis, ou cuja potência está sujeita a uma grande variação,
o que torna difícil uma dosagem exata. Trata-se de plantas que podem
tanto remediar quanto envenenar, de acordo, por exemplo, com a dose e
as interações com outros fatores bioquímicos e psicossociais. O
termo phármakon,
em grego,
significa
ao mesmo tempo remédio e veneno (Derrida,
2005), embora grande parte de nossa sociedade associe a imagem do veneno somente ao
termo droga e a do remédio ao termo fármaco. Apesar da etimologia
controversa da palavra droga (Vargas, 2008), com várias hipóteses
levantadas (por exemplo, na Holanda, droghe
vate
significava barril de folhas secas), o uso corrente do termo indica
algo ruim (que droga!),
tal como na língua inglesa, onde a palavra junk
se refere tanto a drogas pesadas, como morfina e heroína, quanto a
“lixo”, “algo imprestável” (Harris, 2005). Por aqui, em
geral, se costuma considerar, automaticamente, o uso de substâncias
prescritas pela indústria farmacêutica e obtidas legalmente em
farmácias e drogarias como algo sempre benéfico e o uso de
“substâncias psicoativas e matérias-primas para sua produção,
que, em razão da proibição, são qualificadas de drogas ilícitas”
(Karam, 2008), como algo sempre maléfico. Trata-se apenas de
um arbítrio jurídico-moral. Ao
isolar os alcaloides e obter na forma pura o princípio ativo dessas
plantas, o que os cientistas da Sandoz queriam era “fabricar um
preparado farmacêutico estável” para se tentar estabelecer então
uma dosagem terapêutica segura. Nessa busca da dose ideal, a equipe
estudava amostras de plantas batizadas com nomes fantásticos e
elegantes, como a Digitalis purpurea,
ou dedaleira, a Scilla maritima,
ou cebola marítma, e a cravagem do centeio, também chamada esporão
do centeio, ergot,
ou, o nome talvez mais irresistível, Claviceps
purpurea.
Claviceps purpurea |
A
ergotina, presente na Claviceps
purpurea,
fungo que se forma principalmente em grãos de centeio estragados, é
uma substância tão instável que, ao longo dos séculos, mostrou
que, em certas doses, podia matar ou mutilar,
em doses precisas podia ajudar a medicina e, em doses tóxicas,
causar fortes perturbações mentais (Cashman, 1970). O ergot
produz
o
ergotismo ou fogo de Santo Antão, doença que, durante mais de 600
anos, provocou mortes e mutilações na Europa, pela constrição dos
capilares da extremidade do corpo. Por outro lado, a
cravagem do centeio
produz contrações uterinas e o risco de sua utilização como
auxiliar no trabalho de parto foi assumido durante séculos no
Oriente Médio: a ergotina, usada no momento ou de modo incorreto,
podia chegar a matar a criança, a mãe ou ambas; mas, na quantidade
e momento oportunos, “era um verdadeiro benefício para a
gestante”.
Mas mesmo o princípio ativo isolado da ergotina, o ácido lisérgico, com que o laboratório da Sandoz trabalhava, ainda mostrava-se muito instável, ao menos até 1938. Foi quando Hofmann encontrou um processo útil para combiná-lo com outras substâncias e produziu uma série de compostos. No dia 2 de maio, "com a intenção de obter um estimulante circulatório e respiratório", produziu o vigésimo quinto da série de compostos, a dietilamida no ácido lisérgico (Lyserg-saure-diathylamid), que acabou recebendo a sigla LSD-25. Testes laboratoriais indicaram fortes efeitos no útero e foi observado que animais experimentais ficavam inquietos sob efeito da droga. Mas, na ocasião, o fármaco não despertou interesse, sendo os testes descontinuados. O pessoal da Sandoz não fazia a mais remota ideia do que havia sido produzido.
Mas mesmo o princípio ativo isolado da ergotina, o ácido lisérgico, com que o laboratório da Sandoz trabalhava, ainda mostrava-se muito instável, ao menos até 1938. Foi quando Hofmann encontrou um processo útil para combiná-lo com outras substâncias e produziu uma série de compostos. No dia 2 de maio, "com a intenção de obter um estimulante circulatório e respiratório", produziu o vigésimo quinto da série de compostos, a dietilamida no ácido lisérgico (Lyserg-saure-diathylamid), que acabou recebendo a sigla LSD-25. Testes laboratoriais indicaram fortes efeitos no útero e foi observado que animais experimentais ficavam inquietos sob efeito da droga. Mas, na ocasião, o fármaco não despertou interesse, sendo os testes descontinuados. O pessoal da Sandoz não fazia a mais remota ideia do que havia sido produzido.
Hoffman no laboratório |
Ao contrário, cinco anos após sua primeira
síntese, Hofmann,
então diretor adjunto do laboratório,
sentiu-se tomado por um
“pressentimento peculiar, o sentimento de que esta substância
pudesse possuir propriedades diferentes das que foram estabelecidas
nas primeiras investigações”. Tal pressentimento o induziu a
sintetizar novamente o LSD, o que era bastante incomum, “uma vez
determinada a falta de interesses farmacológicos”. Mas seu empenho
em seguir a intuição, assim como sua atitude de experimentação
radical, seriam essenciais para o que a ciência estava para criar.
Molécula de LSD |
Tentando
entender o que ocorrera, lembrou ter manipulado o ácido lisérgico,
embora não tenha compreendido como conseguira absorver, em algum
contato acidental bem leve – pois nem se lembrava de ter ocorrido
–, uma dose grande o suficiente para causar os efeitos que foram
vividos, experienciados, de modo tão vívido, intenso, exuberante.
Imaginou então que devia se tratar mesmo de uma droga com uma
potência extraordinária. Mas sua atitude de cientista logo
sinalizou-lhe que já era hora de ir além de quaisquer devaneios e
especulações: “parecia
haver somente uma maneira de se chegar
ao fundo disto. Decidi fazer uma auto-experiência”.
saindo
do laboratório
Assim,
numa segunda-feira, 19 de abril de 1943, mais especificamente às 16:20,
Hofmann se auto-administrava 250 microgramas de LSD-25 no laboratório
da Sandoz, sem fazer ideia ainda que estava absorvendo dez vezes a
dose que, no futuro, seria estabelecida como a mínima eficaz para
obter os efeitos psicoativos que ainda estavam por serem descobertos.
Às 17:00, após registrar ter sentido vertigem, ansiedade,
distorções visuais, paralisia e vontade de rir, cessava as notas em
seu diário de pesquisa. Já estava claro que o LSD tinha sido mesmo
a causa da extraordinária experiência anterior, “pois
as percepções alteradas eram do mesmo tipo de antes, embora bem
mais intensas”. Teve que lutar para falar de modo inteligível e
pedir ao assistente de laboratório, que estava ciente do
experimento, que o acompanhasse até em casa. Como “nenhum
automóvel estava disponível por causa das restrições de uso
durante a guerra”, foram de bike. Há exatos 71 anos, foi realizado
um dos passeios mais fantásticos pelas ciclovias da mente.
Blotter comemorativo |
Mas aos poucos sua experiência subjetiva foi
começando a tomar formas mais ameaçadoras. Na viagem, todo seu
campo de visão “ondulava e se distorcia como se visto num espelho
torto”.
Com isso, começavam a
oscilar e se distorcer também alguns dos parâmetros
espaço-temporais que servem usualmente de referência, de contorno
para uma imagem de si: a identidade também começa a ser perturbada.
Imagina você ter tido a “sensação de não ser capaz de sair do lugar”,
mas ouvir depois, de seu colega, que “tínhamos viajado muito
rápido”... Sua percepção do tempo e do espaço está muito
alterada. Sua? O ambiente ao redor se encontra transformado: tudo parece
girar e os objetos mais familiares assumem formas grotescas,
ameaçadoras, em contínuo movimento, “animadas, como se dirigidas
por uma inquietude interna”. Há poucos instantes havia pedido para
chamar o médico da família e agora mal consegue reconhecer a
vizinha que lhe traz o leite, também solicitado, pois ela se tornou
“uma bruxa malévola, insidiosa com uma máscara colorida”. Muito
impressionantes também as alterações que começa a sentir
internamente: “um demônio tinha me invadido”, tomando posse de
“corpo, mente, e alma”, triunfando sobre a vontade, arrasada
“pelo medo terrível de ter enlouquecido”. Está em outro lugar,
outro mundo, outro tempo. O corpo, estranho e sem vida, talvez esteja
morrendo: “seria isto a passagem?”. Fora de si, ante o medo de
uma morte por vir, se culpa por não ter se despedido da família:
“será que eles entenderiam que eu não tinha experimentado de modo
irrefletido, irresponsável, mas com extrema precaução, e que tal
resultado era totalmente imprevisível?” Bastante paranoico, quer
beber leite, muito leite.
Quando
o médico da família finalmente chega,
a paranoia tinha passado, mas é o assistente
de laboratório que o informa da experiência, pois Hofmann ainda não
consegue formular frases muito coerentes. O médico nota as pupilas
dilatadas, mas sua avaliação não aponta qualquer sinal de
anormalidade: pulso, pressão sanguínea e respiração estão
normais; não há razão alguma para prescrever qualquer medicamento.
Ao invés disso, o médico leva Hofmann para a cama e senta-se ao
lado, acompanhando o lento retorno desse mundo estranho, no qual,
pouco a pouco, o cientista começa a contemplar cores sem precedentes
e jogos de formas que persistem sob os olhos fechados. Vão surgindo
imagens caleidoscópicas fantásticas, “alternando, variando,
abrindo e se fechando em círculos e espirais, explodindo em fontes
coloridas, reorganizando e se cruzando em fluxos constantes”. Nessa
reorganização cruzada, a percepção acústica se transforma em
percepções óticas e todo som gera “uma vívida imagem variável,
com sua própria consistência, forma e cor”. Passadas algumas
horas, exausto, cai no sono, “para despertar na manhã seguinte
revigorado, com a mente clara, embora ainda um pouco cansado”, mas
sentindo fluir “uma sensação de bem-estar e vida renovada”. No dia seguinte, sua percepção estava diferente, com sede de vida:
“o mundo estava como que recriado. Todos meus sentidos vibravam em
um estado da mais alta sensibilidade que persistiu por todo o dia”.
Animação italiana inspirada na experiência de Hofmann
A
conclusão do auto-experimento de Hofmann mostrou o LSD-25 se
comportando como “uma substância psicoativa com propriedades e
potência extraordinárias”. Não se conhecia outro fármaco capaz
de produzir efeitos tão intensos em doses tão baixas. Hofmann era
um homem de ciência e estava
seguro que o LSD “teria uso na farmacologia,
na neurologia e especialmente na psiquiatria”, embora naquele
momento “não tivesse a mínima suspeita de que a nova substância
também viria a ser usada além da ciência médica, como um
inebriante”.
Tampouco
reconheceu, à época, a “conexão significativa
entre a inebriação por LSD e experiências visionárias
espontâneas, até bem depois, após experiências adicionais levadas
a cabo com doses bem mais baixas e sob condições diferentes”.
Inúmeros usos e sentidos ainda estavam por ser descobertos e
inventados para o LSD. Embora o tema convide a mais esclarecimentos
em outro texto, não podemos deixar de colocar que, após a proibição
do LSD e sua entrada na agenda I de drogas mais perigosas, para as
quais não se reconhece uso médico, é em clima de comemoração que
a psicodelia tem vivido atualmente. Hofmann passou décadas
lamentando a proibição das pesquisas científicas com o LSD, mas,
antes de morrer em 2008, aos 102 anos de idade, teve a felicidade de
conhecer a recente retomada dos estudos com fármacos psicodélicos,
na Suiça, embora não mais com LSD produzido pela Sandoz (a empresa
fundiu com a Ciba-Geygi, em 1996, formando a atual Novartis; há décadas não fabrica mais LSD e a história da substância sequer
consta na homepage, mas isso é assunto para outro texto).. E nós
temos ainda a felicidade de recebermos a recente divulgação das
primeiras publicações de resultados da primeira pesquisa com LSD
realizada em quatro décadas. Mas isso também já seria assunto para outro
texto. Bem, embora eu tenha muito texto para elaborar hoje e não vá
me furtar ao compromisso, preciso deixar registrado que agora são
16:20 e a tarde
ensolarada está mesmo para quem puder comemorar,
passear, viajar, seja por rodovias, ferrovias, ciclovias, hidrovias,
psicovias e outras tantas psicodelias. Portanto, aproveitem e boa
viagem! Mas, com prudência. Levem água, capacete, leite etc...
Referências:
CASHMAN,
John. LSD.
São Paulo: Perspectiva, 1970.
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. (1972). São Paulo: Iluminuras, 2005.
HARRIS, Oliver. Introdução do editor. Em BURROUGHS, William. Junky. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
HOFMANN, Albert. LSD - My Problem Child. McGraw-Hill Book Company, 1980. (disponível em pdf)
KARAM, Maria Lucia. A Lei 11.343/06 e os repetidos danos do proibicionismo. Em: LABATE et al (orgs). Drogas e cultura: novas perspectivas. Salvador: EDUFBA, 2008 (também disponível em pdf).
VARGAS, Eduardo V. Fármacos e outros objetos sócio-técnicos. Em: LABATE et al (orgs) op. cit. 2008.
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. (1972). São Paulo: Iluminuras, 2005.
HARRIS, Oliver. Introdução do editor. Em BURROUGHS, William. Junky. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
HOFMANN, Albert. LSD - My Problem Child. McGraw-Hill Book Company, 1980. (disponível em pdf)
KARAM, Maria Lucia. A Lei 11.343/06 e os repetidos danos do proibicionismo. Em: LABATE et al (orgs). Drogas e cultura: novas perspectivas. Salvador: EDUFBA, 2008 (também disponível em pdf).
VARGAS, Eduardo V. Fármacos e outros objetos sócio-técnicos. Em: LABATE et al (orgs) op. cit. 2008.
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