quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Centenário de William Burroughs (1914-2014)



"William S. Burroughs", por Robert Mapplethorpe

Hoje é o centenário do escritor beat William Burroughs, que exerceu e ainda exerce uma enorme influência na arte e na cultura dos séculos XX e XXI, sobretudo devido a suas referências às inúmeras drogas que tomou ao longo de décadas, aos questionamentos acerca das instâncias de exercício de controle no contemporâneo e à voz de marginal...



St. Louis Blues

St. Louis, Missouri, cinco de fevereiro de 1914. Do casal Mortimer e Laura Lee, nasce William Seward Burroughs II, batizado em homenagem a seu avô, o inventor da máquina de somar que ainda tornaria a Burroughs uma das maiores indústrias americanas do século XX(¹). Mas, em 1929, Mortimer e Laura já haviam vendido sua parte da empresa por algo em torno de 200.000 dólares. Possuíam uma loja de presentes e um lar confortável, mas nenhuma fortuna. Aos oito anos de idade, o filho do casal havia escrito uma novela com o curioso título The Autobiography of a Wolf (as pessoas riam e corrigiam: você quis dizer biografia de um lobo! Não, ele quis dizer autobiografia de um lobo mesmo)... Aos dezesseis, William teve uma experiência psicotrópica marcante, ao ingerir hidrato de cloral, comprado em drogaria, algo que aprendera em sua ávida leitura de livros de gangster: a dose foi exagerada e o jovem teve que ser levado à enfermaria da escola, o que acabou causando preocupação e embaraço entre familiares e professores.

Folheto distribuído pela Burroughs Adding Machine Co.

Formação intelectual

Capa do livro de 1973
Aos dezoito anos, Bill foi para Harvard estudar literatura inglesa, mas não curtiu a universidade nem chegou a escrever nada criativo lá, embora tenha aprendido a usar a biblioteca, por achar de grande valor para um escritor ler bastante. Como presente de formatura, seus pais lhe deram uma pensão de 200 dólares e pagaram-lhe uma viagem à Europa. Decidiu ingressar na escola de medicina da Universidade de Viena. Pouco depois, sem completar o curso, se casou com Ilse Klapper, judia alemã que não conseguia renovar o visto iugoslavo. Não eram namorados; casaram-se apenas para entrar nos Estados Unidos. Bill, então com 24 anos, voltou sem planos a St. Louis e soube que um amigo foi estudar em Harvard. Por falta de coisa melhor pra fazer (e para sair de St. Louis), juntou-se a ele e se graduou em antropologia, estudando arqueologia maia, assunto que se tornou um interesse por toda sua vida. No ano seguinte, se inscreveu em um seminário sobre semântica geral, em Chicago, para onde se mudou no verão de 1942 e onde viria a trabalhar em dois breves empregos que também influenciariam fortemente as temáticas e o estilo de suas composições literárias futuras: o de investigador em uma agência de detetives especializada em pegar empregados de lojas com a mão na massa e, em seguida, o de exterminador de insetos.

Chicago e New York: estágios no mundo do crime

Allen Ginsberg, Lucien Carr e William Burroughs, New York, 1953
Logo chegaram em Chicago dois amigos seus de St. Louis: David Kammerer e Lucien Carr. Dave acompanhava Lucien por todos os lugares, mesmo que este, de certo modo, quisesse distância. Em 1943, Lucien se transferiu da Universidade de Chicago para a Universidade Columbia, em New York. Dave e Bill também se mudaram para New York. Na véspera do Natal, Lucien levou ao apartamento de Bill um colega de Columbia, chamado Allen Ginsberg. Foi também através de Lucien que Bill e Dave conheceram Jack Kerouac e sua namorada, Edie Parker. Ainda levaria ao menos uma década até que Ginsberg, Kerouac e Burroughs despontassem como grandes expoentes da chamada literatura beat, ou geração beat. Mas uma tragédia ocorreria muito antes do sucesso.
Burroughs e Kerouac brincando com uma faca
Em agosto de 1944, Lucien esfaqueou Dave e foi preso. Bill e Jack foram considerados coniventes por não o terem dedurado imediatamente. Os pais de Bill pagaram sua fiança e os de Edie pagaram a de Jack (mas somente após Jack e Edie se casarem na prisão). Bill e Jack decidiram contar sua versão da história em um romance policial escrito a quatro mãos, com o título E os hipopótamos foram cozidos em seus tanques. Teria sido seu primeiro livro publicado. No entanto, atendendo ao pedido de Lucien, o livro não foi editado. Ou melhor, o livro foi publicado muito recentemente, quando os envolvidos no episódio já haviam morrido, inclusive os autores do texto.
Ali mesmo, em New York, Bill começou uma jornada antropológica pelo mundo das drogas, guiado por Phill White e Herbert Huncke. Bill nunca tinha tomado pico antes, mas perguntou a Phil como se fazia e, após alguns meses perambulando com ele, desenvolveu um pequeno hábito, tendo Phill The Sailor White lhe mostrado como persuadir médicos a prescreverem morfina. Na mesma época, Ginsberg e Keroauc apresentaram Bill a Joan Vollmer, estudante de jornalismo na Universidade de Columbia que esteve fora do campus, dando luz à Julie, no verão de 1944. Joan tinha se separado do marido, voltado para New York e conseguido um apartamento grande perto de Columbia, para onde então se mudaram Kerouac, Edie, Hal Chase e Ginsberg, este último tendo sido expulso de Columbia em 1945. Bill também passou a frequentar o ambiente, onde obtinha fácil companhia para seus crescentes experimentos com drogas. Bill e Joan iniciaram um romance.
Joan Vollmer
Após Bill ter se mudado para o apartamento de Joan, a situação se deteriorou lentamente. Joan, com excesso de benzedrina circulando no corpo, começou a ter alucinações auditivas, criando uma imagem mental de toda uma trama envolvendo seus vizinhos, a quem auscultava com um copo na parede, sendo que por vezes os vizinhos nem ao menos estavam em casa. Além disso, Bill estava se picando constantemente diante de todos e Herbert Huncke começou a usar o apartamento para guardar peças roubadas e foi cagoetado por porte de drogas. Logo a polícia chegou a Bill, por uma receita que este havia forjado para o amigo e, em abril de 1946, foi preso por obter narcóticos por meio de fraude. Seus pais pagaram de novo sua fiança. 
Billy (foto tirada por Allen Ginsberg)
Embora os 200 dólares que recebia deles fosse o bastante para viver na época, não dava para alimentar seu vício. Logo Bill começou a ajudar Phil White a rapar uns bebuns no metrô. Em junho, foi pego por tráfico de heroína e mandado para St. Louis, aos cuidados do pai. Em sua ausência, Joan sentia-se só, teve um caso e foi aumentando as doses de benzedrina, até ir parar numa emergência hospitalar. Allen avisou a Bill, que correu para New York para resgatá-la. O casal passou férias em um hotel na Times Square e, entre visitas a galerias de arte e museus, fizeram um irmão para Julie, que viria a receber o infeliz nome de William Seward Burroughs III. Não mencionarei aqui o quanto sofreu Billy ao longo da vida.

De Algiers à Cidade do México

Em 1948, William Burroughs II comprou uma casa em Algiers, entre Mississipi e New Orleans, mas a estadia foi breve, pois se indispôs com vizinhos e foi pego por posse de drogas. Por sorte, Joan arrumou um bom advogado e Bill evitou a prisão, indo para tratamento. A investigação policial foi considerada ilegal, mas o advogado sugeriu-lhe que partisse, pois se fosse pego de novo por drogas, em Louisiana, seria condenado a sete anos. Era prudente deixar o Estado. Em maio de 1949, levou a família para ficarem com Kells Elvins, em sua fazenda, onde começou a ler Wilhelm Reich e construiu, com Kells, um acumulador de orgônio.
Burroughs, com seu acumulador de orgônios, 1974.
No fim de 1949, partiu com Joan e as duas crianças, Billy e Julie, para a Cidade do México, onde acabou por se matricular na Mexico City College, estudando História Maia e Asteca e linguagem Maia. Continuava mal-visto pela vizinhança, mergulhado na heroína e ostentando um casamento altamente promíscuo, com ambos saindo ocasionalmente, cada um por sua parte, com diferentes rapazes. Foram visitados por Elvins e sua esposa, que encorajaram Bill a escrever. Kells sempre se impressionou com sua memória, senso de humor seco e habilidade em contar histórias e deu ao amigo a autoconfiança necessária para fazê-lo começar. Elvins insistia que ele narrasse linearmente suas experiências como usuário de drogas pesadas. Bill, mesmo chapado, trabalhava diariamente, escrevendo em ordem cronológica, como um diário. Em dezembro de 1950 o primeiro rascunho do livro estava pronto, chamado inicialmente Junk (lixo, droga, porcaria). No livro, a palavra junk refere-se somente aos opiáceos injetáveis: heroína e morfina.
O escritor usou drogas com altíssimo potencial de causar dependência
Capa da edição original

Em 1953, foi publicado Junkie: confissões de um viciado irrecuperável. Junky é um livro seco, sem volúpias(²). Mas o primeiro texto com assinatura de William Burroughs, a 
“Carta de um perito no vício em drogas perigosas”, seria publicado somente em 1957, no British Journal of Addiction. Embora Junky tenha sido publicado antes, foi sob o pseudônimo William Lee (tentando esconder sua identidade de drogado de sua mãe, Laura Lee, obteve, obviamente, um retumbante fracasso), um dos diversos adotados por Will Deninson, Old Bull Lee etc.


A rotina William Tell

Logo após ter vivido uma aventura no Equador, duplamente frustrada em seu interesse de encontrar o yagé e ter relações sexuais com seu companheiro de expedição, Lewis Marker, que não era gay, um episódio mudaria todo seu futuro. Em 6 de setembro de 1951, logo após voltar da expedição frustrada, Bill ouviu o assovio de um amolador de facas na rua, sentiu lágrimas escorrendo dos olhos e perguntou o que havia de errado consigo mesmo. Com dificuldade de respirar, sentindo-se deprimido, voltou para o apartamento e começou a beber intensamente, a tarde toda, com Joan. Estavam sem grana e Bill ia vender uma arma. Esperavam o comprador no apartamento de um amigo, quando Bill abriu sua bolsa de viagem, puxou a arma para fora e disse É hora de nossa rotina William Tell. Ponha um copo na cabeça. Rotinas eram uma invenção literária de Burroughs, baseada em fragmentos espontâneos, entre realidade e ficção. Mas eles nunca tinham feito uma rotina Guilherme Tell. Joan, que também estava muitíssimo embriagada, gargalhou e colocou um copo de água em sua cabeça, como se tratasse de algo muito habitual. Bill atirou e o copo caiu no chão, ileso, enquanto Joan despencou na cadeira. A bala atingira seu cérebro pela testa e ela foi declarada morta na entrada do Hospital da Cruz Vermelha. 
Bill foi solto sob fiança, mas tinha que comparecer semanalmente à prisão para assinar documentos. Julie foi enviada aos cuidados dos avós maternos, Billy aos cuidados dos avós paternos e Burroughs ficou sozinho no México. Mais de 30 anos depois, escreveria ter sido forçado à horrorosa conclusão de que nunca teria se tornado de fato um escritor senão pela morte de Joan. 
William Seward Burroughs II parece sempre ter vivido sob uma ameaça de possessão e uma constante necessidade de escapar da possessão, do Controle. Mas, em sua própria avaliação, foi a morte de Joan que o colocou em contato com o invasor, o Ugly Spirit, e lançou-lhe em um esforço de uma vida inteira, no qual não teve escolha senão escrever sua rota de fuga. Escrever se tornou uma forma de fazer fugir, ou de tentar escapar desse controle que parece vir de fora, como um espírito obsessor. Controle permaneceu uma preocupação constante para o escritor.
Notícia da morte de Joan Vollmer

Da América do Sul ao Marrocos

Em 1952, Bill começou a trabalhar em outro livro, Queer. Em janeiro de 1953, partiu em uma expedição às selvas da América do Sul, em busca da ayahuasca, relatada em correspondências trocadas com Allen Ginsberg, que viriam a ser publicadas posteriormente como Cartas do Yage. Em maio, quando Burroughs estava em Lima, Junkie foi publicado pela Ace Books em uma tiragem de 100.000 cópias. Queer seria publicado somente em 1986, 33 anos após ter sido escrito. Embora o autor considerasse este uma continuação de Junkie, há uma mudança na estratégia narrativa, que passa da primeira para a terceira pessoa. No entanto, o contraste entre tais livros é, de certo modo, sutil, pois, como diz o autor, a terceira pessoa é de fato primeira pessoa. Ou seja, o ponto de vista do narrador em Queer é o de William Lee: quando alguém sai de onde Lee está, desaparece até que ele o veja novamente.
Allen Ginsberg e William Burroughs
Em dezembro de 1953, Bill deixou New York e foi para Tangier, no Marrocos. Convidou Ginsberg, por quem estava apaixonado de modo ultra-dependente, para irem juntos, tendo tido o convite rejeitado pelo amigo e admirador. Em Tangier, Bill se sentia só, isolado e perseguido pela morte de Joan. Apesar do vício intenso (chegou a se aplicar Eukodol a cada duas horas), trabalhava duro na escrita e nas cartas trocadas com Allen, que permaneceu como receptor das rotinas de Bill, nas quais Tangier era chamada Interzone. Nessa época, escrever não era mais um projeto, mas se tornou uma parte essencial de sua vida. Bill tinha que escrever, havia se tornado de fato um escritor. E Interzone era um veículo perfeito, pois espelhava Tangier, que, entre 1945 e 1956, era uma terra independente e barata para viver. Durante o período, Bill tentou diversos tratamentos auto-administrados para seu vício, sem muito sucesso. Em 1956, pegou 500 dólares emprestados de seus pais, quitou dívidas e se mudou para Londres, para tentar um tratamento com apomorfina, substância que tenta fazer as células corporais atingirem seu equilíbrio metabólico anterior ao vício, removendo assim a necessidade celular da droga. Dessa vez, foi melhor sucedido.
Convite para a celebração do centenário de Burroughs em Londres (lugar secreto)

De volta a Tangier, Bill construiu um ambiente favorável à escrita, com fotos e tiros na parede, um acumulador de orgônios e um excelente majoun (doce de haxixe) caseiro. Pela primeira vez na vida, escrevia o tempo todo. Nesse contexto foi produzido o material que iria compor seu livro de maior sucesso, Naked Lunch, assim como parte do material de The Soft Machine e The Ticket That Exploded. Bill costumava levar um bloco de notas para o jantar e fazia anotações enquanto comia. Tomava majoun todo dia e acredita que não teria conseguido o que conseguiu se não fosse por isso. A escrita por fragmentos se tornou, a cada vez mais, um método rigoroso. Escreveu para Allen que rotinas são completamente espontâneas e provem de quaisquer conhecimentos fragmentários de que você disponha. De fato, não pode existir algo como uma rotina exaustiva. Burroughs sugeria que não faria diferença a ordem em que o material fosse lido. Sobre seu método, dizia: é quase escrita automática. Eu costumo sentar doido de haxixe por um período que chega a seis horas de digitação em velocidade máxima. Embora as coisas estivessem indo bem em Tangier, Bill sentia saudades de seus amigos americanos. Allen combinou ir com seu namorado, Peter Orlovsky, e o amigo Jack Kerouac, ajudar a compilar e organizar os manuscritos de Bill. Em 1959, foi publicado The Naked Lunch, livro que seria adaptado para o cinema em 1991, pelo canadense David Cronenberg (o título do filme em português virou Mistérios e Paixões).
Burroughs cumprimenta um Mugwump no set de filmagem

Filho pródigo

Como diz Barry Miles, Burroughs é um escritor cujas ideias, imagens e linguagem atingiram a população geral amplamente, através filmes, vídeos, discos, fitas, ou obras de arte dos vários artistas influenciados por sua imagem e ideias, sendo que estas últimas atingiram pessoas que nunca leram seus livros e pensam nele apenas como uma celebridade. Na leitura de Miles, cada um dos três escritores beats mais famosos teve sua própria década: Kerouac, com sua vida de fantasia livre na estrada, explodiu, nos anos 1950, sobretudo para um público de cool jazz branco (Brubeck, Baker, Mulligan). Ginsberg tinha alcançado certa notoriedade e fama durante o julgamento por obscenidade de Howl, em 1957, mas foi para Europa e Índia, retornando somente em 1963, tornando-se um dos gurus da geração hyppie. Em 1965, quando foi lançado o álbum Call me Burroughs, muitas pessoas diziam que não tinham compreendido Bill até ouvirem sua voz de marginal dizendo todas aquelas coisas ultrajantes. Mas foi somente no final dos anos 1970 que ele de fato retornou à América como filho pródigo. No Saturday Night Live, em dezembro de 1981, Lauren Hutton o apresentou como em minha opinião, o maior escritor americano vivo. Burroughs foi festejado e honrado não apenas por artistas companheiros, mas pelos tipos mais diversos e inconvenientes. E embora Lonesome Cowboy Bill não quisesse nada com o mundo do rock, foram os roqueiros que logo se ligaram nele, atraídos por sua imagem ultrajante e referências a drogas.
Capa do disco de 1965
Sua influência no meio musical é enorme. Além de sua presença na capa de Sergeant Pepper's Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, há que se contar também o Soft Machine, banda inglesa de rock psicodélico, da qual participava o poeta australiano Daevid Allen. Dave era, em Paris, parte da cena centrada em torno do Beat Hotel(³); conhecia Burroughs e o pessoal da editora Olympia, daí, quando se mudou para Londres, em 1966, para montar um grupo de rock, pegou o nome de um livro de Burroughs. Há também o grupo folk nova-iorquino Mugwumps (nome dado em referência a personagens de Naked Lunch), formado em 1964, por Zal Yanovsky e John Sebastian, posteriormente pertencentes ao Lovin' Spoonfull. Para darmos mais alguns poucos exemplos (haveria inúmeros outros), tem a banda Steely Dan, nome de um vibrador no livro Naked Lunch, cujo título inspirou o nome de uma banda obscura de San Francisco e de onde foi também tirado nada menos que o termo que definiu todo um estilo musical: heavy metal.
William Burroughs e Jimmy Page

O padrinho do underground e o Ugly Spirit

William Burroughs e Matt Dillon, em Drugstore Cowboy, de Gus Van Sant
Burroughs era uma presença forte, embora um tanto quanto invisível. Os filmes que fez com Anthony Balch, Towers Open Fire e Cut Upseram sempre exibidos no UFO e outros clubes underground. David Bowie ficou bastante familiarizado com este trabalho e escreveu as letras de seu álbum de 1974, Diamond Dogs, utilizando a técnica cut-up de Burroughs, conforme mostra no documentário Cracked Actor(4). No final dos anos 1970, os punks descobriram Burroughs e mais um punhado de nomes foram tirados de seus livros, como o da banda Dead Fingers TalkJá nos anos 1990, o Sonic Youth aparece no CD de Burroughs Dead City Radio e Kurt Cobain gravou um disco com ele, chamado The priest” they called him (em 1989, Bill havia feito uma ponta no filme Drugstore Cowboy, de Gus van Sant, interpretando um padre viciado em heroína). O músico Glenn Branca chegou a dizer que Burroughs possui a chave para a escrita cyberpunk.
Wayne Propst no funeral do amigo
Em agosto de 1997, em consequência de uma complicação posterior a um ataque cardíaco, Bill faleceu, ainda fascinando muita gente do meio artístico, sobretudo musical, como Patti Smith, Lou Reed, Mick Jagger, Laurie Anderson, Frank Zappa, Sex Pistols, Disposables Heroes of Hiphoprisy... Como entender tamanho potencial de contágio?
Burroughs dizia que a linguagem é um vírus. As palavras seriam imagens com sentido e, tanto em sua materialidade quanto nas ideias que portam, se propagariam como vírus. Em suma, as invenções de Burroughs contagiam. 
Brion Gysin e William Burroughs posam diante da Dream Machine
Trata-se, acima de tudo, de uma tecnologia subversiva de comunicação: das rotinas aos cut-ups, a espontaneidade e o trabalho com fragmentos foram ganhando lugar cada vez mais estratégico em sua arte, como táticas de guerrilha para combater oUgly Spirit. Bill viveu atordoado com o que teria causado aquele tiro na testa de Joan: como foi possível que tudo tenha escapado ao controle? Uma vez viu Gysin, em transe, anotar num papel “The Ugly Spirit shot Joan because...”. Brion não foi capaz de completar a mensagem ao sair do transe, mas Bill nomeou então o que o atormentava. O Ugly Spirit talvez equivalha ao controle da linguagem, dos corpos e do pensamento pelas estruturas hegemônicas de poder. E Burroughs talvez seja, por sua vez, como um vírus instaurado nesse mesmo sistema de controle.
OBS.: no fechamento deste texto, descubro que Barry Miles acaba de lançar uma nova biografia, por ocasião do centenário de Burroughs, anunciando se tratar da história da batalha entre William Burroughs e o Ugly Spirit. Chama-se Call me Burroughs: a lifePelo visto, não vai faltar assunto...
Burroughs e os inúmeros gatos que tinha em casa ao final da vida

REFERÊNCIAS:

BURROUGHS, William. A linguagem é um vírus. Em: COHN, Sérgio (org.). Geração Beat. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010.
______. Almoço nu. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
______. Electronic revolution. Em: GRAUERHOLZ, James; SILVERBERG, Ira. Word virus: the William S. Burroughs reader. New York: Grove Press, 1998.
______. Junky. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005 (s. Intoxicações, v. 3).
______. Nova Express. New York: Grove Press, 1992.
______. O gato por dentro. Porto Alegre: L&PM, 2008.
______. Queer. London: Pan Books, 1986.
______. The Soft Machine. New York: Grove Press, 1992.
______. The Ticket that Exploded. New York: Grove Weidenfeld, 1987.
______; GINSBERG, Allen. Cartas do yage. Porto Alegre: L&PM, 2008.
______; KEROUAC, Jack. E os hipopótamos foram cozidos em seus tanques. São Paulo: Companhia das letras, 2009.

FRIEDLANDER, Paul. Rock and roll: uma história social. Rio de Janeiro: Record, 2008.
MISTÉRIOS E PAIXÕES. Adaptação do original (Naked Lunch, de William Burroughs) e direção por David Cronenberg. Canadá/Reino Unido, 1991. DVD 115 min..
MILES, Barry. William Burroughs: El hombre invisible – a portrait. New York: Hyperion, 1993.
WILLIAM BURROUGHS: POETA DO SUBMUNDO. Documentário. Direção Klaus Maeck. Alemanha, 1986. DVD 54 min.



NOTAS:

1 - Em 1886, William Seward Burroughs fundou a American Arythmometer Company para comercializar sua própria invenção: uma máquina de somar cuja maior novidade era a impressão em papel. William faleceu em 1898. Em 1905, o nome da empresa foi mudado para Burroughs Adding Machine Company, em sua homenagem. Em 1911, foi adicionada à máquina uma função de subtração. Em 1923, foi criada uma máquina com a função direta de multiplicação e o capital da empresa começou a se multiplicar: em 1925, enquanto a Remington - que inventou, em 1873, a máquina de escrever - fabricava sua primeira máquina de escrever elétrica, a Burroughs produzia sua primeira calculadora portátil. Em 1927, a Remington se fundiu com a Rand Kardex (cardex é um sistema de fichas em armário, como vê-se em bibliotecas), para formar a Remington Rand. Em 1940, a Burroughs produziu uma calculadora portátil para o governo dos Estados Unidos e, em 1948, as vendas da empresa ultrapassavam 100 milhões de dólares. Em 1952, deram seu primeiro grande passo para o desenvolvimento futuro de um computador, ao produzirem um sistema de memória eletrônica para o ENIAC (Electrical Numerical Integrator and Calculator). Em 1953, a empresa foi renomeada Burroughs Corporation. Em 1961, lançaram a série B5000, primeiro computador dotado de memória virtual. Em 1986, a Burroughs fundiu-se com a Sperry Rand (que já era resultado da fusão, em 1955, da Remington Rand com outra empresa, a Sperry Corp.) para fundar a Unisys Corporation, a segunda maior empresa de computadores, à época, atrás somente da IBM.
B5000
Placa colocada na entrada do Beat Hotel

2 - As duas grafias são utilizadas em referência ao mesmo livro. Junkie ou junky é a pessoa viciada em drogas pesadas.

3 - Hotel pequeno e de baixíssimo custo, em Paris, que se tornou uma espécie de ponto de encontro (e estadia) de uma série de artistas, entre meados dos anos 1950 e 1960. Dentre os diversos artistas beats  e afins que viveram lá (daí o apelido do Hotel), estavam Allen Ginsberg, Peter Orlovsky, William Burroughs, Gregory Corso e Brion Gysin. 


4 - Os livros de Burroughs The Soft Machine (1961), The Ticket that Exploded (1962) e Nova Express (1964) se tornaram conhecidos como trilogia dos cut-ups. O cut-up é uma técnica de colagem que Bill aprendeu em 1959, com o artista plástico Brion Gysin. O tipo mais simples consiste em cortar uma página de um texto ao meio horizontalmente, juntar os dois pedaços resultantes e cortar ao meio verticalmente. Isso gera quatro seções: a seção 1 é então colocada ao lado da seção 4 e a seção 3 ao lado da seção 2, em uma nova sequência. Levando isso adiante, podemos quebrar a página em unidades cada vez menores em sequência alterada (é mais fácil entender assistindo a um vídeo). O importante é aproveitar encontros casuais entre os textos, que acabam produzindo sentido. Não se trata de aproveitar todos os encontros. Certo trecho pode ser ou não utilizado; e, caso seja, pode ser ou não alteradoCut-ups podem ser de diversos tipos, não apenas textos, mas também sons, fotos, vídeos etc.

Um comentário:

zanthemacak disse...

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